O Agro e Mercados de Carbono

Por Fábio Marques (FDC)

04/07/2025

Em diversas áreas têm sido cada vez mais comum o diagnóstico de ambientes polarizados, onde linhas de pensamento são associadas a dois lados claramente opostos, onde o saudável confronto de ideias é substituído por conflitos não construtivos. A relevância do setor produtivo brasileiro baseado no uso da terra, aqui chamado simplesmente de “agro”, é tão grande para o país e o mundo que não podemos cair nessa armadilha.

Sim, já sabemos que o agro (responsável) é um dos mais importantes motores de desenvolvimento econômico, social e ambiental do país. Trata-se de setor onde o Brasil é líder global em diversos segmentos, não só por nossas condições edafoclimáticas, mas principalmente por anos de pesquisa e inovação, lideradas por instituições de Estado exemplares, como a Embrapa, academia e empreendedores que atuam com coragem, ousadia e resiliência igualmente exemplares. E sim, também sabemos que, no contexto da mudança do clima, o agro precisará atuar em duas grandes frentes: (i) preparar-se ainda mais para se adaptar a uma nova realidade, onde será necessário superar vulnerabilidades advindas de secas mais frequentes, chuvas concentradas, novas pragas e outros eventos climáticos extremos que afetam diretamente a produtividade rural e (ii) dar a sua contribuição à mitigação da mudança do clima, considerando de forma equilibrada o conjunto de suas emissões de gases de efeito estufa e também das remoções de carbono que podem ser geradas na propriedade. Tudo isso sem deixar de lado o dever de casa básico no que se refere ao enfretamento do desmatamento.

Nesse contexto do Agro, o Brasil tem a possiblidade de conciliar competividade e o desenvolvimento sustentável por meio de um dos principais instrumentos para transformar a economia na escala que a mudança do clima demanda: a precificação do carbono via mercados. Em geral, existem duas abordagens: (i) os mercados voluntários de carbono, que são baseados em projetos específicos onde créditos de carbono podem ser emitidos e comercializados mediante comprovação de redução de emissões ou aumento de remoções de GEE da atmosfera, por exemplo, por meio de melhor manejo dos solos ou práticas de reflorestamento com objetivos de produção ou conservação e (ii) os mercados regulados de carbono, que são baseados em limites obrigatórios de emissões para setores específicos que podem fazer o uso do mercado para comprar ou vender diretos (“permissões”) de emitir, caso excedam ou fiquem aquém do limite, respectivamente.

No caso dos mercados regulados, o Brasil aprovou no ano passado a Lei 15.042, que instituiu o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE). O SBCE criará limites mandatórios de emissões para setores específicos e permitirá o comércio de permissões de emissões como explicado acima. Por diversas razões técnicas e políticas, o Agro não foi incluído entre os setores que estarão sujeitos a esses limites. Pode-se discordar ou concordar dos argumentos daqueles que foram a favor e contra esta exclusão. Mas num ambiente democrático há que se respeitar a realidade recente e procurar entende-la. Ou seja, apesar de recentemente aprovada, o debate na verdade precisa ser aprofundado, haja visto o nível de complexidade e, sobretudo o fato de que mercados de carbono ainda representam uma novidade para grande parte da sociedade, dos legisladores e formuladores de políticas públicas nas diversas esferas do país. É natural que haja um processo de amadurecimento, baseado não somente na compreensão técnica, mas sobretudo nas implicações políticas e de competitividade para a inserção do setor na nova economia global.

Quando se fala em amadurecimento, tem-se a impressão de que se trata de algo longínquo. Não é o caso aqui. Já existe um bom espaço para a evolução a partir de duas possibilidades: (i) no escopo do SBCE, já existe abertura, modesta, mas bastante relevante, para a consideração do uso da terra naqueles casos em que áreas de reflorestamento sejam diretamente vinculadas a cadeias produtivas industriais que usam a madeira sustentável como insumo para diversos produtos agroindustriais, por exemplo, produção de chapas e painéis, celulose e papel, carvão vegetal, bioenergia e outros bioprodutos. E, (ii) no escopo dos mercados voluntários, já existem diversas metodologias que conectam atividades de redução de emissões ou aumento de remoções pelo Agro à geração de créditos de carbono, vistos aqui como um instrumento para incentivar medidas adicionais.

O aproveitamento imediato dessas duas possibilidades pode, na pior das hipóteses, difundir experiências no nível da propriedade rural e conhecimentos fundamentais para que o Agro e a sociedade brasileira possam ampliar massa crítica e melhorar continuamente a capacidade de tomar decisões sensíveis, dentro ou fora do SBCE. Por outro lado, escancaram o que é um dos nossos maiores desafios quando se trata do Agro em mercados de carbono: a urgência de se aumentar o protagonismo do Brasil na elaboração das regras determinam o potencial desses mercados, jamais vistos como fim em si mesmo, mas como um instrumento de transformação de padrões de produção e consumo.

Mesmo no nosso próprio sistema doméstico (SBCE), estamos direta e indiretamente sujeitos a princípios e critérios que vêm de fora do país. Muitas vezes, são coerentes, mas outras tantas passam longe de um processo de “tropicalização”. Para se ter uma ideia, no âmbito da primeira possibilidade mencionada acima, o Brasil será o primeiro país no mundo a permitir o vínculo direto entre o sequestro de carbono (remoções) e um mercado regulado, por meio de segmentos de base florestal verticalizados, ou seja, cujas operações industriais estejam sujeitas aos limites de emissões do sistema. Trata-se de decisão assertiva e acertada, coerente com as nossas peculiaridades, que vão muito além desse segmento do Agro. A nossa capacidade de dar exemplo nesse e em outros casos será determinante para que as regras da nova economia sejam justas e criem instrumentos capazes de conciliar desenvolvimento e proteção ao clima. No mercado voluntário e em sistemas de relato de emissões corporativas, enfrentamos situações parecidas, onde a maior parte das metodologias e regras são geradas fora do país e muitas vezes pouco aplicáveis à realidade do Brasil, ainda que tenhamos, em tese, a liberdade de propor.

Além da dificuldade política internacional inerente a dinâmicas como essas, a participação do país nos processos de elaboração das regras do jogo ainda está muito aquém do que o país representa para o mundo nessa área. Vale o lembrar que no caso de sistemas voluntários, não há a participação direta de governos, portanto, o engajamento depende fortemente da sociedade civil, incluindo o setor privado e outros atores. Se não formos protagonistas nessa área, não há quem seja por nós. Portanto, quando se fala em mercados de carbono e Agro, o passo zero seja no contexto de um mercado regulado ou de mercados voluntários, é o aumento do engajamento de produtores e da sociedade como um todo. Sem essa mobilização básica e sem o aprofundamento naquilo que já está disponível, ainda que seja limitado, teremos sérios desafios para otimizar o uso de mercados de carbono pelo agro e, ultimamente, para uma transição justa.

Fábio Marques é Pesquisador e Professor da FDC Agroambiental